Uma das principais características do pensamento ocidental, que o acompanha desde Platão, é a separação entre as instâncias existenciais dos seres humanos — corpo e espírito. O pensamento platônico não somente separou-as em camadas, como também hierarquizou-as moralmente. Dois milênios depois, surge Nietzsche com a proposta de remendar essas pontas, movimentá-las de alguma maneira, nos trazendo reflexões importantíssimas para os dias atuais.

 

Resumo

    • A vida humana foi separada em corpo e espírito. Platão negou os aparatos do corpo (sentidos, opinião) em prol dos do espírito (razão, conhecimento, ideia)
    • O corpo como produto da interação entre forças: o consciente como menor parte da existência humana
    • O gráfico de Deleuze: Niilismo em quatro partes.

 

Desde Platão que é possível notarmos uma evidente separação entre corpo (aparência, opinião, doxa) e espírito (razão, verdade, logos). O curioso é que Platão não somente separou a existência em duas instâncias, como também a hierarquizou; a partir de Sócrates, somente é válido aquilo que é racional, que está submetido ao logos, e toda e qualquer doxa deve ser descartada por ser potencialmente enganosa.

Nietzsche, de maneira muito sugestiva, resolve inverter essa hierarquia. Reparem: não acabar com ela, mas inverter. Segundo repara Deleuze, para Nietzsche, todo corpo é o resultado da interação entre forças desiguais, onde temos, naturalmente, uma superior (ativa) e uma inferior (reativa). A terminologia é importante pois, intuitivamente, pensaríamos que ao lado da força ativa, em um corpo, estaria uma força passiva; porém Nietzsche nos diz que toda força mantém sua potência, mesmo em um corpo. Enquanto uma existe dominando, a outra existe concedendo sua existência a dominação; mas não deixando de existir.

Como o encontro entre duas forças é totalmente ocasional e arbitrário, também a formação de um corpo o é, e isso impressionava Nietzsche, que dizia que nada poderia ser mais surpreendente que o corpo humano, que existia enquanto tal meio a tanta arbitrariedade. Neste corpo, a força reativa se faz presente, aparente, através da consciência. Esta, por sua vez, se vê submetida a uma superioridade, a uma elevação: o corpo. Daí a inversão.

Nos Desprezadores do Corpo, de Assim falava Zaratustra, Nietzsche contrapõe o Eu e o Si-mesmo. “Teu Si-mesmo ri de teu Eu e de seus saltos orgulhosos”. O corpo, segundo Nietzsche, carregaria o que de mais elevado existe na realidade; aquilo que Freud chamou de inconsciente, Nietzsche chama de corpo. “Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido — ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo habita ele, teu corpo é ele. Há mais razão em teu corpo que em tua melhor sabedoria.”[1] Tendo dito isto, agora, em Nietzsche, na hierarquia das forças (ativa superior e reativa inferior), o corpo estaria mais elevado que a consciência, que a razão.

Deleuze debruçado sobre essa análise, desenvolve, os conceitos de niilismo baseados na filosofia nietzscheana. Para exemplificar, criamos o seguinte gráfico:

 

 

O niilismo negativo é a primeira forma de niilismo, muito presente no cristianismo e na filosofia socrática: em prol de uma realidade fictícia, inventada, nega-se a que vivemos. Ela é a que Nietzsche mais cita ao longo de sua obra, como a mais nociva ao ser humano. Seria o nada de vontade.

O niilismo reativo surge depois, muito presente na literatura russa do século XIX e, depois, famosamente discutido no existencialismo francês. É uma reação à imposição da ficção perante a consciência. De tão repressora que foi a ideia de Deus, de Moral, de Paraíso, surge a vontade de nada. Muito bem conceituado através da figura de Bazárov, de Turguêniev, o niilista negativo põe em evidência, agora, a razão e as coisas que provêm da mesma. Deus está morto, todo e qualquer projeto metafísico também. Tendo isto em vista, a vida não tem qualquer sentido, uma vez que está sujeita a um mundo indiferente a ela. A Razão agora é dominante, é o grande ídolo do dogma moderno; dela provém toda a redenção da vida. Mesmo Camus, grande filósofo absurdista, diz que é necessário imaginarmos uma felicidade no sofrimento que é a vida; imaginarmos uma realidade onde, mesmo condenados a sofrer enquanto seres vivos, revidamos com nossa racionalidade a toda essa indiferença.

O último dos três niilismos é o passivo. Neste, é também possível ver uma redução da vida a um nada. Porém, diferentemente das outras formas de niilismo já vistas, agora é possível ver uma evolução no ser humano. Não existe propriamente um dogma, não existe mais um ídolo; os valores, no entanto, seguem os mesmos. Nega-se a vida em prol de uma ilusão. Nietzsche usa a figura do budismo para exemplificar essa forma de niilismo. É passiva pois não está ativamente negando nada, mas abrindo mão passivamente da vida para alcançar o objeto além da vida.

Tendo em vista o rumo que o curso humano vinha tomando, e de maneira oposta ao niilismo passivo, Nietzsche concorda que é necessária e bem vinda a evolução do ser humano. É necessário que não nos prendamos mais a nenhum dogma, e que neguemos o curso de nossa história até então. Porém, é de maneira ativa que devemos nos afirmar, que devemos construir, que devemos pôr em prática tudo que idealmente teorizamos. O Niilista Ativo também nega a vida, mas para afirmá-la. É no conselho de Dionísio à Ariadne que se expressa a importância do niilismo Ativo: “Não é preciso antes se odiar, para se amar?”. É preciso se negar para se construir, para se reinventar. Do vazio nascem as mais puras criações. O além do homem (Der Übermensch).

Jorge Luiz Sales[2]

 

Referências bibliográficas 

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. 1a edição. São Paulo: N-1 edições, 2018.

— NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. 1a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

— __________. Além do bem e do mal. 1a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

—__________. Assim falou Zaratustra. 1a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

—__________. O anticristo e Ditirambos de Dionísio. 1a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

— MARCONDES, Danilo. Introdução a história da Filosofia: dos pré socráticos a Wittgenstein. 2a edição. São Paulo: Editora Zahar, 1997.

— TURGUÊNIEV, Ivan. Pais e Filhos. 1a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

 

[1] Dos desprezadores do Corpo in Assim falava Zaratustra. Cia das Letras, São Paulo, 2018.

[2]  Mestrando em Filosofia pela PUC RJ e graduado na mesma instituição.