A Angústia e a Ansiedade são muitas vezes entendidas como transtornos a serem combatidos por prejudicarem o bem-estar e a produtividade do indivíduo. A sociedade moderna se propõe a eliminá-las ou controlá-las, quando poderiam ser entendidas como elementos indissociáveis da condição humana e aliadas importantes do crescimento e da realização plena como indivíduo. Soren Kierkegaard, filósofo dinamarquês do início do século XVIII, nos apresenta uma visão disruptiva no qual a Angústia se torna uma potência que nos move para a realização e o propósito, alterando o entendimento acerca da ansiedade e do desespero na modernidade.
Resumo
- A angústia é constitutiva da existência e consiste na dor do homem ter que tornar-se si mesmo, pois a existência traz consigo a tarefa de decidir e toda a decisão é cisão, ruptura. Mas a angústia é também o elemento que move nossa potência, pois é a partir dela que buscamos saltos para estados de maior realização pessoal e crescimento.
- As raízes da ansiedade se encontram nas reações de defesa dos animais em face de estímulos que representam perigo/ameaça. Freud utiliza o conceito de “ansiedade como sinal”, que considera a ansiedade como uma reação adaptativa a situações de perigo.
- A forma como a ansiedade nos acomete na modernidade é produto da sociedade contemporânea e está impregnada em sua própria estrutura de funcionamento e na dinâmica da relação entre as pessoas.
A angústia e a ansiedade tem sido objeto de interesse da Filosofia e da Psicologia há séculos, mas ainda persiste uma certa dificuldade de diferenciação entre ansiedade e angústia. Ambos os termos advém do verbo grego “agkhô”: eu aperto, eu estreito. Daí derivam no latim os verbos ango e anxio que significam aperto, constrição física e tormento. Quem nunca teve aquele aperto no peito que se pode sentir quase que fisicamente, mas que muitas vezes não conseguimos entender psiquicamente em sua totalidade?
Dados da OMS indicam que o Brasil é o país com maior número de pessoas ansiosas no mundo e que 86% dos brasileiros sofrem com algum transtorno mental, como a ansiedade e a depressão, sendo a Síndrome de Burnout uma das doenças ocupacionais que mais causam afastamentos do trabalho. Os transtornos mentais e comportamentais ocupam a 3ª causa de incapacidade para o trabalho, correspondendo a 9% na concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez. (Secretaria de Previdência/Ministério da Fazenda/2017)
Os chamados “estados ansiosos”, enquanto quadros patológicos, só começaram a ser abordados de forma estruturada pela Psiquiatria com os estudos de Sigmund Freud no final do século XIX, quando ele diferenciou a “Angnstneurose” (“Neurose de Angústia”) da Neurastenia e a ansiedade crônica dos ataques de ansiedade. A visão psicanalítica Freudiana prevaleceu por muitos anos, mas a partir dos anos 1960 o desenvolvimento da psicofarmacologia impulsionado pela indústria farmacêutica trouxe uma nova abordagem, onde se busca classificar os estados de ansiedade por meio de critérios de diagnóstico em Transtornos a serem combatidos com medicamentos.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM V estipula que “os transtornos de ansiedade incluem transtornos que compartilham características de medo e ansiedade excessivos e perturbações comportamentais relacionados. Medo é a resposta emocional a ameaça iminente real ou percebida, enquanto ansiedade é a antecipação de ameaça futura”. A Psiquiatria evolutiva entende que as raízes da ansiedade se encontram nas reações de defesa dos animais em face de estímulos que representam perigo/ameaça à sobrevivência, ao bem-estar ou à integridade física. Neste contexto, Charles Darwin influenciou Freud no conceito de ansiedade como sinal, que considera ansiedade como uma reação adaptativa a situações de perigo.
Mas não podemos falar de Ansiedade na ótica da Psicologia ou da Psicofarmacologia, sem antes refletirmos acerca do conceito de Angústia pelas lentes da Filosofia, notadamente sob o ponto de vista Fenomenológico Existencial. Soren Kierkegaard foi um filósofo dinamarquês nascido em 1813, considerado o pai do Existencialismo, que nos anunciou um modo novo de fazer Filosofia, surgido da relação estreita entre existir como pessoa e a consciência desse existir, onde a existência não se constitui em algo metafísico, fora do homem, mas sim na existência dentro do próprio homem. Kierkegaard acreditava na busca por uma verdade subjetiva: “encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar a ideia pela qual eu esteja disposto a viver e morrer”.
Em um mundo que não controlamos e no qual não existe uma dimensão metafísica externa para nos salvar, a tarefa da existência se torna bastante complexa. Em “O Conceito de Angústia” de 1844, Kierkegaard aborda este elemento central de sua filosofia, entendendo a angústia como um componente fundamental da constituição do homem. O Homem, no si mesmo, está implicado necessariamente na angústia, que não é um mal externo que o acomete, mas algo positivo que o compõe. Como dizia Kierkegaard, nem Deus nem os anjos têm angústia. Ela consiste na dor do homem ter que tornar-se si mesmo, pois a existência traz consigo a tarefa de decidir o tempo todo e decisão é cisão, ruptura. Não podemos ter nem escolher tudo e não controlamos todos os acontecimentos, pois a existência é um fluxo de possibilidades que demanda escolhas contínuas. Neste contexto a Angústia é o elemento que move nossa potência, pois é a partir dela que buscamos saltos para estados de maior realização pessoal e crescimento.
Já em “O Desespero Humano (Doença até a Morte)” de 1849, Kierkegaard aborda o desespero a partir de outra perspectiva. Contrariamente à angústia, o desespero não é um elemento constitutivo do si mesmo, mas um desequilíbrio entre os elementos constitutivos do indivíduo que o impede de se realizar na sua plenitude, impedindo os saltos que movem a existência.
Ora, considerando então que a angústia seja um elemento natural compatível com os desafios da tarefa de existir e a ansiedade uma resposta natural adaptativa, por que se tornaram inimigos a serem combatidos na modernidade? A Psicofarmacologia, que procura circunscrever objetivamente o que caracteriza a angústia e a ansiedade e quais seriam as suas causas para eliminá-las com medicamentos, ganhou enorme importância com os robustos financiamentos da indústria farmacêutica e a guerra das patentes no processo de medicalização.
É importante diferenciarmos o medo da ansiedade. A ansiedade está geralmente associada a uma ameaça desconhecida, interna, vaga e conflituosa, insidiosa, representando normalmente Conflitos Intrapsíquicos (Eu e o mundo interno). Já o medo se refere a uma ameaça conhecida, externa, definida e sem conflitos, súbita, representando normalmente Conflitos Interpessoais (Eu e o mundo externo).
Os transtornos de ansiedade, de acordo com o DSM V, se diferenciam do medo ou da ansiedade adaptativos por serem excessivos ou persistirem além de períodos apropriados ao nível de desenvolvimento, sendo caracterizados por ansiedade e preocupação excessivas na maioria dos dias que o indivíduo considera difícil controlar. São comuns sintomas tais quais inquietação ou sensação de estar com os nervos à flor da pele, fatigabilidade, dificuldade em concentrar-se ou sensações de “branco” na mente, irritabilidade, tensão muscular, perturbação do sono. Estes sintomas acabam gerando grande demanda nos serviços de saúde sem serem diagnosticados.
A ansiedade que nos acomete é produto da sociedade moderna e está impregnada em sua própria estrutura de funcionamento e na dinâmica de relação entre as pessoas, rápida, competitiva, superficial e digital. Além disto, não só se busca eliminar a angústia e a ansiedade como impor o discurso da felicidade compulsória, a ser compartilhada nas redes sociais e praticada nas organizações em programas motivacionais. Em “Modernidade Líquida” Zygmunt Bauman, nos alerta que as relações se tornaram fluídas e superficiais, sendo que a velocidade e as formas de comunicação se alteraram dramaticamente em um mundo digital cada vez mais desumanizado. A sociedade acaba por criar doenças crônicas em pessoas que não se adequam ao padrão que o sistema neoliberal as impõe, onde se tornou angustiante não ser produtivo. A todo momento os indivíduos estão sendo induzidos a fugir do ócio para produzir, pois os agentes do sistema disseminam a crença de que o fracasso é fruto da falta de trabalho e empenho, isto sem considerar os ambientes tóxicos de alta competitividade que predominam nas organizações.
Enfim, estamos doentes de nós mesmos e temos que refletir sobre que Filosofia queremos praticar para alavancarmos a potência de nossa angústia por meio do sentido de nossa existência, minimizando o desespero e normalizando a ansiedade. Na maioria dos casos não devemos tentar eliminar a ansiedade, pois isto pode gerar um círculo vicioso que traga mais ansiedade, retroalimentando o processo. Pelo contrário, devemos dançar com ela para entender seu movimento e deixar que flua como uma onda até que se esvaia. Caso tenha que lutar com ela, faça-o com golpes de judô, aproveitando o seu peso a seu favor, para que não tenha que combatê-la frontalmente com Rivotril e Lexotan.
Carlos Assis[1]
[1] Psicólogo Clínico e CEO da Philos Org..
Referências Bibliográficas.
— KIERKEGAARD, Soren A.. O Conceito de Angústia. 3a edição. Editora Vozes, 2015.
— KIERKEGAARD, Soren A.. O desespero humano: Doença até a morte. 1a edição.
Editora Unesp, 2010.
— American Psychiatric Association. DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais. 5a edição. Editora Artmed, 2014.
— FREUD, Sigmund. (1996) Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.. (1894e) “Sobre os fundamentos para destacar da
neurastenia uma síndrome específica denominada ‘neurose de angústia’”, v. III, p.91-120